quarta-feira, julho 19, 2006

o gato

Enquanto o gato me olhava
atónito do espanto meu,
subi a rua apressada,
levada pelo vento
da fúria.
Encontrei um velho de bengala,
que empurrei
para dentro do autocarro
e enquanto o gato se lambia longamente,
descobri que o que me faltava

era uma bengala.
Para me empurrar
para a vida.

Levantei os olhos
e olhei o gato.
Para lá dos telhados
impostos,
cinzentos,
agora lambia
o doce leite,
lambia o tempo,
indiferente aos outros,

lambia feridas e nódoas de pó,
lambia presentes desfeitos
em sombra.
Entrei no centro
e comprei um perfume
um perfume bengala,
que me ajudou a subir
mais escadas.
Num gesto mecânico
olhei para trás
para o gato
que ficara a lamber-se...passo a mão pelo cabelo
descubro o pelo eriçado.

Imperioso,
amaciar o cabelo
e a vida,
para ganhá-la

com uma bengala de perfume,
trocado que foi
o pau santo.
O gato olha-me
semicerradamente...
Não foge nem se entrega.

E enquanto saio protegida com bengalas
de perfume e disciplina na cabeça,
o gato
já desperto para o dia
espreguiça-se ao sol.
Afagado o ego,

o gato,
felina entro em casa.
Nos bolsos escondidas
as bengalas
as garras
de que me tinha
maquilhado
socorrido.


sábado, julho 01, 2006

O homem que caiu ao mar

Quando o homem caiu e mergulhou, perdendo-se na profundidade das coordenadas, sentiu dentro dele a felicidade de não pertencer a lado nenhum e em nenhum cais existir uma amarra que o prendesse à terra.

Quando o homem se perdeu dentro do mar que o engoliu, dançou com sereias enlaçado a si mesmo e fundiu-se no canto do Adamastor que era a sua dor...trocou passado por presente e presente por futuro, soluçou no acorde de um beijo de areia, sem o hálito fresco da corrente.

Quando o homem caiu ao mar não ouviu o grito dos outros, a água envolvente protegeu-o de outras vidas, dando-lhe a bênção do esquecimento da sua.
Não ouviu gritos nem acenos viu, festejou sozinho os bancos de coral que lhe feriram o corpo e celebrou de um trago as estrelas que ateavam o fogo em que ardia.

Encontrou meninos que se pareciam ligeiramente com a criança que ele já tinha sido e com esses meninos de mar, chorou todos os pesadelos que tinha escondido em búzios.

Segredou tristezas tecidas em cordões umbilicais e mastigou irónico outros destinos.

Na ânsia de uma valsa com os peixes, espalhou fragmentos de plâncton pelo seu corpo,tentando domar os cavalos marinhos que o galopavam.

Quando, por fim, outros homens o conseguiram trazer para terra e fazê-lo respirar, o homem estremeceu de frio e vomitou na areia os demónios de sal que esculpira, a besta de pedra que o levara ao fundo.