sexta-feira, setembro 08, 2006

Serenidade koi


Já era noite quando chegou a casa.

Cansada, deixou cair a mala sobre a cama, despiu-se rapidamente e correu para o duche...

Deixou que a água fria lhe doesse na pele e pacientemente esperou que a temperatura subisse, olhando absorta, as gotas de água que se despenhavam em cascata nas suas mãos abertas...

Ritualmente esfregou com força os músculos doridos pelo dia e deixou que o perfume da espuma subisse até ao seu cérebro, torturado...

Passou o exfoliante pela pele, numa tentativa teimosa de renovação de células e deleitou-se com o branco dos turcos em que se envolveu...

Saiu, deixando que a nuvem de vapor perfumado se espalhasse pelas paredes e de forma indiferente, vestiu as suas velhas calças de algodão e a sua camisola larga...acendeu as velas, ligou a aparelhagem e sem paciência para escolher um cd, decidiu-se pelo "Oceano Pacifico"...

Abriu a janela que dava para o pequeno jardim, aspirou o perfume da noite e por fim sentiu a sensação de paz próxima...deixando a janela aberta de par em par, dirigiu-se à cozinha e preparou a sua chávena de café, pegou na lata de comida para peixe e entrou pela pequena porta rodeada de heras e hibyscus amarelos, para o seu mundo encantado...desceu os três degraus e sentando-se no último, soube que aquele seria um momento mágico...ainda com a chávena de café na mão esquerda, com a direita espalhou os pequenos grãos de alimento pelo lago e sorriu às karpas koi que devoravam famintas o jantar tardio...foi bebendo lentamente o café, deixando a pouco e pouco a sua mente libertar-se de todas as contrariedades, desejos, frustrações e tensões...lentamente esqueceu as notícias da guerra que nenhum acordo, até agora, conseguira travar, as imagens dos mortos, dos escombros, da destruição...do caos, dela.

Os pequenos peixes ziguezagueavam pela água fresca, enchendo de cor e movimento as folhas dos nenúfares e dos papiros frondosos...

Como se já muitas vezes tivesse encenado aquela noite, olhou uma vez mais o seu jardim...as hortênsias azuis, as rosas, as pedras graníticas, o suor dos anos em adubo. Em gota. Percorreu ávida a parede de pequenas flores brancas e perfumadas que separavam o seu espaço do dos vizinhos...e brincou com as heras que serpenteavam no ar...

Lembrava-se ainda, de quando tudo era só terra seca, antes dos jasmins, antes dos bambus do lago, antes das alegrias da casa e das buganvílias...antes do rodondedro... lembrava-se da esperança, semeada em canteiros, lembrava-se da sua força enterrada em raízes.

Depois, da sua primavera em flor.

Olhou as lanternas que há muito ninguém acendia, e fez desenhos de pó na teia onde se tinha perdido...sabia agora o caminho a percorrer e a lógica dos seus passos, para ela era a coisa mais simples do mundo...desse mundo estranho e bizarro, onde ninguém se entendia, perdidos pela ambição desmedida e a vaidade fútil...

Surpreendemente não lamentou outros bens nem se lembrou de outros valores.

Reteve nas pupilas o jardim encantado e foi nele que se deitou.

Desejou por breves momentos que o mundo parasse e o tempo também.

O tempo nunca parou.

Na manhã seguinte, embalou as suas roupas e saiu serena, sabendo que nunca mais voltaria.

Só as karpas poderiam entender.

20 Comments:

Blogger as velas ardem ate ao fim said...

ola lápis,

tb eu queria que o tempo desse por vezes umas treguas...mas não.

chá me chegavam uns descontos de tempo-tipo jogo de basquetebol.

Bjos

sexta-feira, setembro 08, 2006 12:55:00 da tarde  
Blogger Delfim Peixoto said...

Pois....se pudessemos fazer um break no tempo....mas assim tbm não é mau

sexta-feira, setembro 08, 2006 2:12:00 da tarde  
Blogger Miguel Baganha said...

Eu também entendi, serei uma carpa?...

Valeu a pena esperar, MedVan..........brilhante, este momento de paz.

ARIGATO ;-)

Bom fim-de-semana

sexta-feira, setembro 08, 2006 3:18:00 da tarde  
Blogger Luigi said...

Quando tentamos definir a lógica do tempo é quando estamos a perder tempo, pois o tempo nunca pára no jardim dos poetas. Para as carpas será mais fácil, os ruídos são bafados pelas águas calmas.

É bom voltar aqui e ler um texto de alguém que sonha em parar o tempo

sexta-feira, setembro 08, 2006 3:31:00 da tarde  
Blogger Leonor said...

nao. o tempo nunca pára. dês as voltas que deres, ele nao se compadece de nada.
gosto de textos bem escritos como este que para ser bonito e ter mensagem nao precisa de palavras dificeis.
o desenho está formidavel.

beijinhos da leonoreta

sexta-feira, setembro 08, 2006 10:03:00 da tarde  
Blogger Luna said...

Bem...este texto esta tão bem escrito, delicioso, de sentimentos e emoções, consegues que sejamos transportados e vivênciemos esses momentos magicos.
beijinhos

sábado, setembro 09, 2006 12:01:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Que belas palavras que saem do bico do teu lápis!...

Um beijo soprado

sábado, setembro 09, 2006 10:17:00 da tarde  
Blogger Alberto Oliveira said...

... o tempo é uma coisa tramada. Falta-nos sempre um pouco dele, precisamente por isso; porque não pára. Estamos sempre a embalar haveres e a partir para outros lugares tentando dar a volta ao tempo; o mais que se consegue são umas diferençazecas horárias, logo anuladas quando voltamos ao ponto de partida.
As carpas não. Não usam relógio.

domingo, setembro 10, 2006 9:51:00 da tarde  
Blogger alice said...

onde é que se compram lápis destes?

quero ter um assim mágico que desenhe outro mundo diferente deste e outro tempo mais lento para apreciá-lo

mandem-me um lápis destes dentro de uma cartola, que eu sou a alice no país dos coelhos ;)

beijinhos a ambas!
muitos

terça-feira, setembro 12, 2006 11:14:00 da manhã  
Blogger ... said...

Pause Still!

Um dos melhores nomes de blogs que já vi.

quarta-feira, setembro 13, 2006 5:01:00 da tarde  
Blogger sem-comentarios said...

Fazes rascunhos ?
esboços ?
guarda-os bem ou então,divulga-nos !

Agradeço-te por entráres no meu blog, só assim tive oportunidade de ler um excelente texto :)

BJ**

quarta-feira, setembro 13, 2006 7:28:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Gostei de passear por aqui, gostei do teu mundo, das estradas, dos caminhos, do céu, dos gatos , das carpas, das asas, do mar, dos jardins e das flores, gostei do que se sente ao passear por aqui...
Vou voltar...
Vem tambem passear lá prós meus lados,

Isabel

sexta-feira, setembro 15, 2006 1:14:00 da tarde  
Blogger Licínia Quitério said...

Preciosa a tua visita. Assim me dás a oportunidade de boas leituras. De luxo, direi.
Beijos.

sexta-feira, setembro 15, 2006 4:35:00 da tarde  
Blogger o alquimista said...

Um texto digno de um profissional escriba...este lápis tem a mão firme dos mestres...qualidade alta neste blog...

Bom fim de semana

sábado, setembro 16, 2006 4:32:00 da tarde  
Blogger sotavento said...

Só as karpas sabem dos jardins!... :)

segunda-feira, setembro 18, 2006 7:04:00 da tarde  
Blogger Maria Papoila said...

É dificil explicar que por vezes o pouco é tudo, e que tudo se torna pouco, num tempo que não pára...

É dificil dizer adeus a uma momento ou mesmo instante, que nos preenche, completa, por em segundos nos fazer encontrar e reencntrar,um pouco de tudo o que somos e que nos fez chegar aqui, como uma volta completa ao nosso mundo...

É dificil abandonar a pele duma vida, para voltar a semear outra, quando não sabemos o que vamos encontrar ou se teremos força para recomeçar, e voltar a semear novos sonhos...

É dificil deixar para trás uma vida, uma historia, quando a vida nos pede para criar uma nova...

Não gosto de despedidas, nunca gostei...Gosto sim de novos começos! Tarde enquanto aqui estivermos nunca será tarde...
1 beijo e até sempre, adorei : )

sexta-feira, setembro 22, 2006 2:55:00 da tarde  
Blogger Missangolas said...

gostei mt do texto nao conhecia o seu blog.bjinho visite o meu

segunda-feira, setembro 25, 2006 4:12:00 da tarde  
Blogger Maria Liberdade said...

Talvez um dia voltasse... para buscar as Karpas.

sábado, setembro 30, 2006 12:35:00 da manhã  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Só as Karpas...

...ou talvez não...


CSD

segunda-feira, março 17, 2008 11:25:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Entra-se t�o r�pido e t�o bem neste pequeno jardim e na pele da personagem que enevitavelmente lemos at� ao fim querendo mais.

bela descri�o.

Gostei muito.

quinta-feira, julho 24, 2008 3:15:00 da tarde  

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